UM CHOQUE DE GARRA

UM CHOQUE DE GARRA

 Matéria do site da Federação dos Bancários:

 http://www.bancariosrjes.org.br/site/unidade/2009/07-09/07-07.html

Maria dos Camelôs e a luta por dignidade na rua

Aos 35 anos, Maria de Lurdes do Carmo Santos tem muita história para contar. Nem todas, felizes. Casada e com um casal de filhos, trabalhando como empregada doméstica, ela estava presa a uma vida sem perspectivas. Deixou o marido, com quem vivia um relacionamento difícil há uma década, e acabou trocando as casas de família pelo trabalho como camelô. E, com esta mudança, sua vida virou do avesso.



Na rua, muito à vontade, ela começou a vender suas mercadorias e a ganhar melhor. “Já cheguei a vender R$ 700 num dia”, revela. A justificativa de Maria para sua opção é pura aula de empreendedorismo: “Depois que você começa a trabalhar para você mesmo, não quer mais trabalhar para ninguém”, analisa. Mas, por outro lado, a vida ficou mais dura: os confrontos com a Guarda Municipal são constantes e Maria, despontando como liderança, passou a ser visada. Nesta época, a Guarda Municipal – o chamado “rapa” – não só apreendia as mercadorias, mas também agredia os vendedores. Numa destas brigas, Maria apareceu na TV correndo com seu filho, de apenas sete dias de vida, em seus braços. Sua mãe, apavorada, não a deixou mais levar o bebê para o trabalho. Dias depois, já sem a criança, houve outro confronto e ela apanhou muito dos guardas. A cicatriz da cesariana recente abriu e ela sofreu um corte no rosto, causado pelo escudo de um guarda. A vendedora precisou ser hospitalizada, mas, assim que se recuperou, voltou para a rua.



Por conta de sua liderança e dos confrontos com os guardas, já foi presa duas vezes. Da primeira, foram levados pela polícia 37 camelôs, sendo que 23 foram mantidos na delegacia. Maria conta que apanhou muito, mas não entra em detalhes. E ela não era a única a sofrer tortura pelos agentes de segurança pública. Nesta época, um ambulante, conhecido como Grande, foi acusado da morte de um guarda municipal. Ficou preso por seis meses e só foi libertado depois que seus companheiros conseguiram reunir provas de sua inocência. Outro camelô, Carlos Renato, apanhou tanto que chegou a ter um olho vazado. A prisão mais longa foi de Rodrigo, que ficou na cadeia por 11 meses. Neste período, a mãe dele faleceu e Maria pressionou – acionando seus contatos políticos – para que o rapaz tivesse licença especial para acompanhar o sepultamento. Ao longo do período de prisão, Rodrigo precisou ficar internado no hospital penitenciário para tratamento das lesões pulmonares que resultaram das surras que levou na cadeia.



Da segunda vez que foi presa, em fevereiro deste ano, sob acusações graves, inclusive de formação de quadrilha, a força política conquistada ao longo dos anos foi providencial. “Foi vereador, deputado, um monte de políticos na delegacia. O delegado falou que só faltava o Lula, em pessoa, aparecer lá. Eu disse a ele que já tinha mandado avisar ao Lula que não precisava vir, não, que o delegado ia me soltar”, conta.



Formação política

Esta mobilização de políticos não veio de um dia para o outro. Quando passou a trabalhar na rua, Maria foi, aos poucos, assumindo uma posição de liderança entre os vendedores ambulantes, o que lhe valeu a alcunha de Maria dos Camelôs. Eleitora de candidatos de esquerda, mas sem ligação com nenhum partido, ela procurou o diretório do PT, que, na época, ficava próximo ao local onde fazia ponto. De lá, foi encaminhada à CUT, onde a militância poderia orientá-la melhor. Foi então que Maria conheceu Darby Igayara, que, hoje, é presidente da Central. “Darby foi meu professor, aprendi muito com ele. Mas, quando eu cheguei lá, ele disse: “O problema de camelô é que vocês vêm aqui quando há muita briga na rua. Quando está tudo calmo, não vêm mais.” Aí, eu disse que eu não ia fazer isso. Rodava a cidade toda panfletando. Escrever documento é fácil, mas ir panfletar, ir pra rua fazer as coisas é que é difícil, ninguém quer ir. Mas eu ia”, relata. Foi então que a CUT passou a apoiar os camelôs, que se reuniram no Movimento Unido dos Camelôs, o MUCa, presidido por Maria.



Nesta época, começou a educação política da vendedora, que cursou somente até a 8ª série do Ensino Fundamental. “Eu quero voltar a estudar, todo ano me matriculo, mas não consigo ir às aulas”, lamenta. Mas, se lhe faltou educação formal, a formação política compensou. “No primeiro ato que eu fui, em 1º de julho, há seis anos, tinha umas 700 pessoas e me chamaram para ir lá em cima do carro de som para falar. Quando eu subi e vi aquela gente toda, comecei a chorar,” conta. Mas o choro não a impediu de relatar publicamente como era difícil a vida dos camelôs, sempre fugindo e apanhando da polícia e da Guarda Municipal, e perdendo as mercadorias. Hoje ela fala com desenvoltura e aprendeu a dialogar com qualquer pessoa, seja autoridade ou seus companheiros de movimento, a falar em público e a negociar.



Casa nova

Moradora de Japeri, município da Baixada Fluminense, Maria pagava um aluguel que comprometia a qualidade de vida da família – que aumentou, com a chegada de mais um menino –, gastava com passagens de trem e perdia muito tempo na condução. Foi então que ela se engajou em mais um movimento o dos sem-teto – trabalhadores de baixa renda que não podem pagar por uma moradia digna e ocupam prédios ociosos. As reuniões aconteciam nas ruas, e a maioria dos participantes eram camelôs, já acostumados a mobilizações. Ainda morando em Japeri, com os filhos, perto da mãe, ela participou de duas ocupações, mas não se decidiu por ir morar nos prédios ocupados, por não ter com quem deixar as crianças. As reuniões continuavam e surgiu a oportunidade de ocuparem um prédio pertencente ao Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, na rua Barão de São Felix, no entorno da Central do Brasil. A ocupação Chiquinha Gonzaga completa cinco anos no próximo dia 25, e haverá uma feijoada para comemorar.



A nova casa é boa em vários aspectos. Originalmente projetado para ser um hotel, o prédio tem apartamentos com sala, quarto, cozinha e banheiro. Além da planta favorável, a organização dos moradores permite tranquilidade total. A disciplina é rígida e quem transgride alguma regra é punido. A ligação de água do prédio foi legalizada – a conta vem em nome do Incra, mas são os ocupantes que pagam. A entrada de saída de pessoas é controlada pelos próprios moradores, que dedicam, cada um, 20 horas por mês à portaria, em turnos de 2 horas. Qualquer problema que aconteça é discutido em reuniões, inclusive as punições para quem desobedece as normas. Não há uso ou tráfico de drogas nas dependências do prédio. Com isso, não só os pertences dos moradores, mas também a segurança das muitas crianças e idosos – alguns sem família – está garantida. Os moradores se reuniram numa associação legalmente constituída, da qual Maria é a presidente.



Com esta experiência, Maria dos Camelôs está virando também uma referência para os sem-teto. Ela é convocada – e atende, sempre – toda vez que um grupo precisa de ajuda para uma nova ocupação ou quando famílias são despejadas de um prédio ocupado. Foi assim com as famílias que estão há pouco mais de uma semana acampadas em frente à Gerencia Regional do INSS, na rua Pedro Lessa, Centro do Rio. O grupo ocupava um edifício na Av. Gomes Freire, região da Lapa, que pegou fogo e foi condenado. Depois de passarem 30 dias sob a marquise do prédio – período em que uma das mulheres deu a luz a uma criança – os sem-teto ocuparam um outro prédio, na Rua Mem de Sá, pertencente ao INSS. A desocupação foi violenta, e só não houve feridos porque havia defensores públicos, políticos, ativistas de direitos humanos e até imprensa. Despejados, os moradores foram para a marquise do prédio administrativo do Instituto, e aguardam que seja pago o Aluguel Social definido em liminar obtida pela Defensoria Pública, que tem prestado assistência ao movimento.



Sem deixar de sonhar

Figura conhecida dos guardas municipais, Maria não pode mais trabalhar como camelô. Ela continua comprando peças no Saara e confeccionando suas bijouterias, mas não tem como montar sua banca. “Se eu aparecer na rua, tomam minha mercadoria,” explica. Hoje, ela entrega o material a duas mulheres, que vendem porta a porta, mas sua renda ainda vem deste artesanato. Com toda a dificuldade, sustenta a filha de 18 anos, um filho de 14 e o caçula, de 6. A mais velha já trabalha, e todos estudam, sempre nas séries indicadas para suas idades. Quando tem que se ausentar por alguns dias, Maria tem tranquilidade para deixar os filhos na Chiquinha Gonzaga, já que os moradores estão sempre atentos às crianças e jovens dos vizinhos.



Atarefada, Maria está sempre às voltas com prisões de camelôs, ocupações e atividades políticas, mas não deixa de fazer planos para o futuro. Ela quer ir a Cuba para tratar do vitiligo, doença de fundo psicológico que é muito estudada na ilha, e sonha cursar a faculdade de Direito. “Primeiro, eu preciso fazer o segundo grau, só que nunca consigo ir à aula! Mas eu vou conseguir,” afirma, determinada.